quinta-feira, 14 de maio de 2015

O DEUS FALÍVEL DO MOLINISMO

James N. Anderson[1]
Traduzido por Gaspar de Souza

Recentemente ouvi o bate-papo sobre Molinismo e Calvinismo entre William Lane Craig e Paul Helm no programa de rádio Unbelievable? de Justin Brierley. Foi mais uma conversa que um debate, mas ainda assim vale a pena ouvir. Nesta postagem eu quero expandir um ponto levantado por Helm, mas não desenvolvido por ele. Primeiro eu resumirei os principais dogmas do Molinismo antes de discutir o que eu considero ser uma séria objeção a ele (seja paciente – a primeira metade desta postagem é apenas a armadilha).

Molinismo é uma teoria filosófica planejada para reconciliar uma forte visão da providência divina (segundo a qual Deus preordena todas as coisas) com uma visão libertária do livre-arbítrio e uma visão sinergista da salvação (segundo a qual não é causada por Deus para qualquer arrependimento e crença; ao invés, os pecadores cooperaram livremente com a graça resistível de Deus a fim de serem salvos). De acordo com o Molinismo, Deus é capaz de, providencialmente, dirigir eventos por meio de seu conhecimento médio, isto é, seu conhecimento do que qualquer criatura libertariana-livre escolheria em qualquer circunstância específica. Por exemplo, Deus sabia de antemão antes do tempo de sua decisão de criar este mundo que eu livremente escolheria um Boston Kreme se eu fosse ao Dukin’ Donuts na noite de 19 de fevereiro de 2014 em tais e tais circunstâncias exatas. Deus, então, é capaz de planejar eventos do primeiro ao último em muitos detalhes por pré-arranjar as circunstâncias precisas nas quais suas criaturas se encontrariam e fariam suas escolhas livres. Deus não causou as escolhas, ele apenas garantiu-lhes em algum forte sentido por orquestrar as circunstâncias à luz de seu conhecimento médio.

Molinista estão, portanto, comprometidos com três afirmações principais. Primeiro, Deus preordenou todas as coisas, incluindo as livres escolhas de suas criaturas. Craig foi bastante enfático sobre isso durante a conversa com Helm. Ele declarou que Deus ‘preordenou’ todas as coisas e ironizou que ele poderia afirmar quase tudo que a Confissão de Fé de Westminster diz sobre o Decreto eterno de Deus e a Providência de Deus – à parte da rejeição deliberada confissão do Molinismo (no a cláusula final em CFW 3.2)

A razão de Molinistas tais como o Craig quererem afirmar isto é porque eles reconhecem que a Bíblia tem uma forte visão da providência (e.g Gen. 50:20; Matt. 10:29-30; Acts 4:27-28; Rom. 8:28; Eph. 1:11). E eles devem ser elogiados por reconhecerem isso (embora, como explicarei em breve, a visão bíblica é mesmo mais forte do que eles pensam).

Em segundo lugar, por afirmar uma visão libertária do livre-arbítrio, os Molinistas estão comprometidos com ideia de que se uma pessoa S escolhe livremente A em uma circunstância específica C, então deve ser possível para S não ter escolhido A. Pode ser mais provável (talvez até esmagadoramente assim) que S escolherá A sobre não-A, mas não deve ser possível para S ter escolhido de outra forma. (Aqui estou sem levar em conta a distinção que alguns libertários fazem entre escolhas derivativas e não-derivativamente livres. No que se segue, para simplificar, vou ignorar as escolhas derivativamente livres. Não penso que a distinção afete meu argumento).

Molinistas, então, estão comprometidos com o seguinte:
(1)               Se S escolhe livremente A em C, então é possível para S não escolher A em C.
Ou, colocando a questão em termos de mundos possíveis:
(1’) Se S escolhe livremente A em C, então existe ao menos um mundo possível no qual S não escolhe A.

Observe que nessa demonstração, C aqui deveria ser entendido como, de fato, a história inteira do universo até o momento da escolha de S. O ponto é que a escolha de S não é determinada (ou, pelo menos causadamente determinada) por qualquer evento anterior ou estados do universo (incluindo o caráter de S, experiências passadas, memórias, crenças, desejos etc)

Em terceiro lugar, o Molinista afirma que Deus tem conhecimento médio, isto é, conhecimento dos contrafactuais da liberdade (por falta de um nome melhor). Deus, então, sabe, antes de sua decisão de criar um mundo particular, verdades condicionais subjuntivas como a que se segue:

 (2) Se S estivesse em C, S livremente escolheria A.

Este é o conhecimento, afirma o Molinista, que permite a Deus preordenar os eventos. Desde que Deus conhece o que cada possível criatura escolheria livremente em cada possível circunstância, consequentemente ele pode planejar. Ele pode saber de antemão como as coisas iriam se ele fosse para criar determinadas pessoas e arranjá-las para fazerem suas escolhas em circunstâncias particulares.

Isso significa que Deus não pode atualizar qualquer mundo possível. Molinistas como Craig farão distinção entre mundos possíveis e mundos factíveis.[2] Todos os mundos factíveis são mundos possíveis, mas nem todos os mundos possíveis são mundos factíveis. Um mundo factível é um mundo possível que Deus pode atualizar com base em seu conhecimento médio: seu conhecimento de verdades como (2). Ele pode “atualizar fracamente” qualquer desses mundos factíveis por “atualizar fortemente” aqueles elementos do mundo sob seu controle causal, a saber, cujas criaturas existem e em cujas circunstâncias elas se encontram. Por seu conhecimento médio, Deus conhece quais mundos possíveis são mundos factíveis, e ele decide (com base em certos critérios) quais dos mundos factíveis (fracamente) atualizar. E esta é a visão Molinista da divina preordenação.

Deveria ser observado que o Molinista não é sempre claro sobre o que conta como circunstâncias em verdades como (2). As circunstâncias incluem o decreto de Deus ou a presciência de Deus, por exemplo? Felizmente, nós não precisamos resolver essa questão aqui, tão logo reconheçamos isso, o que quer que esteja incluído em C em (2) também deve ser incluído em C em (1) e (1’)

[Addendum: Greg Welty assinalou o que eu coloquei acima. Vejam abaixo seus comentários e minhas respostas. Em suma, não importa como as circunstâncias são definidas, mas eu penso que o Molinista enfrenta sérios problemas de qualquer maneira]

Bem, tanto para o contexto, a questão que eu quero colocar é simplesmente esta:
Deus é infalível na visão Molinista?

Eu suspeito que muitos seriam inclinados a responder sim. Face a essa situação, esperaríamos Deus ser infalível. “Deus falível” dificilmente soa bem! Mais significantemente, a Bíblia ensina explicitamente que os planos de Deus não podem falhar. Os propósitos de Deus sempre serão cumpridos.

“Então Jó respondeu ao Senhor, dizendo: ‘Eu sei que tu podes fazer todas as coisas, e que nenhum dos teus propósitos pode ser frustrado’”(Jó 42.1, 2)

“Muitos são os planos na mente de um homem, mas é o propósito do Senhor que prevalecerá”(Prov. 19.21)

“O SENHOR dos Exércitos jurou: Como pensei, assim se cumprirá; como determinei, assim acontecerá[...]O SENHOR dos Exércitos determinou isso! Quem o invalidará? A sua mão está estendida! Quem a fará recuar?”(Is. 14.24, 27)

“Lembrai-vos disso e considerai; trazei-o à memória, ó transgressores. Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade: Que eu sou Deus, e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim.  Sou eu que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; sou eu que digo: O meu conselho subsistirá, e realizarei toda a minha vontade,  chamando do oriente uma ave de rapina, e de uma nação distante, o homem do meu conselho; sim, eu disse e cumprirei essas coisas. Estabeleci esse propósito e também o executarei.(Is 46.8 – 11)

“Porque, assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para lá, mas regam a terra e a fazem produzir e brotar, para que dê semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; não voltará para mim vazia, mas fará o que me agrada e cumprirá com êxito o propósito da sua missão”.(Is 55.10, 11)

Claro, o Molinista está familiarizado com esses textos. A forte visão da providência divina expressa na Escritura é uma das razões que favorece o Molinismo sobre outras posições que compartilham um compromisso com o livre-arbítrio libertário.
Todavia, deveria estar claro a partir o exposto acima que, de acordo com a posição Molinista existem mundos possíveis nos quais os planos de Deus falham. Porque o Molinista está comprometido em afirmar que, embora Deus conheça que S escolheria A em C, e ele não atualiza C porque ele planeja para S escolher A, não deixa de ser possível para S não escolher A em C (Craig claramente afirma este ponto várias vezes em sua conversa com Helm). Em outras palavras, existem mundos possíveis nos quais Deus atualiza C de modo que S escolherá A, mas S não escolhe A. Existem mundos possíveis nos quais o decreto eterno de Deus não acontecerá, porque agentes livre-libertários farão outra coisa do que ele tinha planejado.

A conclusão é esta: com base na posição Molinista existem alguns mundos possíveis nos quais Deus é falível. De fato, existem muitos, mas muitos de tais mundos. Qualquer mundo em que o plano de Deus falhe é um mundo no qual Deus é falível. Parece-me que esta conclusão é construída sobre o sistema molinista.

Então, o que um Molinista poderia dizer em sua resposta? Uma resposta seria a de dizer que Deus não é necessariamente infalível: ele não é infalível em todo mundo possível, mas ele é infalível neste mundo (pelo menos). Deus é contingentemente infalível.

Mas eu penso que existem diversos problemas sérios com esta resposta. Em primeiro lugar, a própria noção de “infalibilidade contingente” é logicamente suspeita. Diante disso, infalibilidade seria um conceito modal. Ela diz respeito à falha possível, não simplesmente a falha real. Infalível não significa não falível, e falível significa capaz de falhar. Se uma pessoa é falível, não o é porque ele tem falhado ou porque ele falhará mas porque ele poderia  falhar. Afinal, não há nada logicamente inconsistente em dizer que S é falível, mas S não falhou (ou falharia) realmente. O que seria inconsistente de maneira direta seria dizer que S é falível, mas S não pode falhar.

Portanto, não poderíamos descrever alguém como infalível simplesmente porque ele realmente tem sucesso em todos os casos, mesmo que ele possa ter falhado em algum ponto. Infalibilidade, certamente, exige que alguém não pode  falhar, mesmo em princípio. Então, não é claro que a noção de “infalibilidade contingente” é mesmo coerente.

Se eu estou certo sobre isso, então o Molinista não deveria dizer que Deus é infalível. Pois, se Deus não é infalível em todo mundo possível, então ele não infalível em qualquer mundo possível, incluindo o mundo atual. (Eu observo, para registro, que este argumento pressupõe alguns princípios modais amplamente-controlados que eu não estou a defender aqui, precisamente porque eles são amplamente controlados!).

Em Segundo lugar, esses mundos com  falhas-divinas apresentam um problema para o Molinista que está comprometido com o ser perfeito da teologia(que é maioria, penso). Se Deus é apenas contingentemente infalível, segue-se que Deus não possui máxima grandeza: pois um ser que é necessariamente infalível é maior que um ser que é contingentemente infalível. Um ser que é infalível em todos os mundos possíveis é maior que um ser que é infalível em apenas alguns mundos possíveis. (É digno de nota que Alvin Plantinga, que introduziu a noção de grandeza máxima em sua defesa do Argumento Ontológico, é um dos mais proeminentes advogados do Molinismo).

A única saída desta situação para o Molinista, tanto quanto eu posso ver, é tomar a rota que eu sugeri acima: abandonar a tese de que Deus é infalível (neste mundo ou em qualquer outro mundo possível).

Parece-me que de tudo isso expõe uma tensão não resolvida no coração do Molinismo. Quando fazemos a pergunta “Os humanos podem frustrar os planos de Deus?”, o Molinista é colocado em duas direções. Por um lado, ele desejará responder não. Afinal, Deus preordenou todas as coisas! Deus tem um decreto eterno. É inconcebível para o Molinista que o decreto de Deus fracassasse.

Mas, ao mesmo tempo, o Molinista também deve responder sim, por causa de seu comprometimento com o liver-arbítrio libertário. Ele quer afirmar (como Craig explicitamente o faz) que, embora S escolheria A em C (e, de fato, irá escolher A se Deus o decretou), e, no entanto, é possível para S não escolher A em C – e, assim, realmente é possível para S agir contrário aos planos de Deus.

Em suma, o Molinista quer ter o melhor de dois mundos.
Outro modo de ver o problema é perguntar se os mundos não-factíveis realmente são possíveis. Suponha que, de todos os mundos factíveis que ele considerou, Deus opte pelo mundo X.  Não parece coerente imaginar Deus pensando: “Eu vou atualizar X um pouco (fracamente) – este é o meu decreto – mas eu sei que há uma possibilidade real de que vou terminar com outro mundo, por causa da possibilidade real que agentes livres-libertários agirão de outro modo que eu tenho planejado”. Mas, se isso não é coerente, em que sentido esses mundos são mundos realmente possíveis?

Como se percebe, essa tensão no centro do Molinismo surge porque ele ambiciona ser deterministicamente indeterminista. “Indeterminismo” por causa de seu compromisso com o livre-arbítrio libertário. “Determinista” porque o decreto de Deus, de alguma forma (não sabemos como) determina de antemão que suas criaturas farão certas escolhas. Isso pode não ser um determinismo causal, mas, apesar de tudo, é determinismo (como muitos Arminianos não-Molinistas, tais como Roger Olson, podem ver claramente). Se preordenar que S escolhe A não significa predeterminar que S escolha A, então o que significa?

O Molinismo é, certamente, uma teoria impressionante. Mas, é apenas impressionante na medida em que um truque de “jogo de copinhos e bolinha” é impressionante. É, par excellence, um truque de mão filosófico. Os Molinistas têm que ser hábeis na arte da desorientação. Agora você vê o determinismo.... e agora não vê mais!

Fonte: http://www.proginosko.com/2014/01/the-fallible-god-of-molinism/


[1] Dr. James Anderson é um ministro ordenado na Associate Reformed Presbyterian Church. Dr. Anderson é professor no Reformed Theological Seminary. Especialista em Teologia Filosófica, Epistemologia da Religião e Apologética Cristã. Sua tese de doutorado, na Universidade de Edinburgh, explorou a natureza paradoxal de certas doutrinas cristãs e suas implicações para a racionalidade da fé cristã. Suas pesquisas e escritos concentram-se no pressuposicionalismo de Cornelius Van Til, particularmente sua defesa do Argumento Transcendental. Dr. Anderson tem uma antiga contribuição ao trazer a tradição Reformada em um maior diálogo com a filosofia analítica contemporânea. Ele é membro da Society of Christian Philosophers, da British Society for the Philosophy of Religion, e da Evangelical Philosophical Society.
[2] “possible world” e “feasible world”

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