segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Liturgia e culto: reflexões à luz das Escrituras e da História Cristã

Por Alderi Souza de Matos

A palavra liturgia soa estranha aos ouvidos de muitos evangélicos atuais. Para eles, esse termo sugere um culto excessivamente formal, rígido e sem vida, mero tradicionalismo herdado do passado. Daí a preferência em muitas igrejas por um estilo de adoração mais espontâneo e participativo, sem fórmulas pré-estabelecidas. No entanto, essa maneira de cultuar a Deus não está isenta de sérios problemas nos dias de hoje. O culto contemporâneo tem se desviado a tal ponto dos padrões bíblicos e históricos que muitos crentes estão começando a sentir a falta de uma liturgia mais reverente e disciplinada. A experiência cristã ao longo dos séculos é rica de ensinamentos sobre esse tema polêmico.

Igreja antiga e medieval
Os primeiros cristãos eram judeus e por isso o culto da igreja primitiva inspirou-se na liturgia das sinagogas. Nestas, após uma invocação inicial, eram recitados o “Shema” (credo baseado em Dt 6.4-9 e outros textos) e o “Tephilah” (conjunto de orações). A seguir, eram lidas passagens do Pentateuco e dos Profetas, seguindo-se uma exposição do texto. Também eram cantados salmos, especialmente o “Hallel” (113-118). Seguindo esse modelo, o culto cristão original foi extremamente simples, constando de orações, cânticos, leituras do Antigo Testamento e das “memórias dos apóstolos”, exortações pelo dirigente, coletas em prol dos carentes e celebração dos sacramentos, em especial a Ceia do Senhor, ou Eucaristia.

O Novo Testamento não apresenta uma descrição detalhada do culto (At 2.42-47), mas os estudiosos acreditam ter identificado materiais litúrgicos em diversas passagens. Um valioso relato do culto cristão no segundo século é encontrado na “I Apologia”, de Justino Mártir (c. 150). Nessa época, já haviam surgido fórmulas para certos elementos da liturgia, como as belas orações eucarísticas existentes em um antigo manual eclesiástico -- a “Didaquê”. Com o passar do tempo, a liturgia foi se tornando cada vez mais padronizada, sendo usada com pequenas variações em todas as igrejas. O culto tinha duas partes distintas: a Liturgia da Palavra, aberta a todos, e a Liturgia do Cenáculo, somente para os batizados.

Na Idade Média, o culto cristão tornou-se ritualístico e aparatoso, perdendo a simplicidade original. Surgiram práticas desconhecidas dos primeiros cristãos, como o uso de incenso, velas, orações pelos mortos e invocação dos santos e de Maria. A língua utilizada era o latim e o celebrante dava as costas para o povo, o que dificultava a comunicação e a compreensão do culto. O impacto sensorial e emocional da missa era profundo, sendo intensificado pela rica arquitetura e decoração dos templos. No entanto, havia pouca instrução bíblica e limitada edificação espiritual.

Atuação dos reformadores
As novas convicções teológicas introduzidas pela Reforma Protestante resultaram em uma profunda reformulação do culto e sua respectiva liturgia. O princípio da “sola Scriptura” fez com que a Bíblia passasse a ocupar um lugar muito mais destacado do que antes. O novo entendimento da salvação pela graça mediante a fé foi acompanhado de uma reinterpretação do sacramento da Ceia, visto não mais como um sacrifício oferecido pela igreja, mas como uma dádiva de Cristo ao seu povo. Por fim, a ênfase no “sacerdócio de todos os crentes” implicou maior participação dos fieis no culto a Deus. Agora, os pontos focais da liturgia eram o púlpito e a mesa da comunhão.

Foi interessante e até mesmo surpreendente a atitude dos reformadores em relação à antiga tradição litúrgica da igreja. Levando-se em conta as grandes rupturas que eles promoveram em relação à igreja medieval, seria de se esperar que também descartassem por completo a liturgia tradicional. Todavia, não foi o que fizeram. Os reformadores sabiam que eram herdeiros de quinze séculos de história cristã. Essa história não podia ser simplesmente esquecida como se não tivesse ocorrido. Por isso, eles reconsideraram somente aquilo que entendiam estar em conflito com as Escrituras, preservando tudo o que era bom e válido na herança do passado.

Martinho Lutero inicialmente apenas revisou a missa latina, não desejando “abolir completamente o serviço litúrgico de Deus”, e sim purificá-lo dos acréscimos indevidos. Mais tarde, elaborou a “Missa alemã” (1526), na língua do povo, para ser utilizada principalmente em regiões rurais. Ulrico Zuínglio (Zurique), Martin Butzer (Estrasburgo) e João Calvino (Genebra) também escreveram ricas liturgias para suas respectivas igrejas, nas quais a Ceia do Senhor ocupava um lugar proeminente. Sua ênfase no canto congregacional resultou em diversos saltérios -- coleções de salmos metrificados e musicados. Na liturgia de Genebra, Calvino buscou o equilíbrio entre orações extemporâneas e fórmulas litúrgicas.

Refletindo sobre o culto
Por culto entende-se o ato público de adoração a Deus realizado pela igreja. Como tal, tem um valor incalculável para os cristãos, sendo a manifestação mais visível e concreta da comunidade cristã. Liturgia vem do grego “leitourgia”, que significava o serviço público prestado por um cidadão. Cristianizada, a palavra passou a expressar o serviço espiritual a Deus e, mais especificamente, o conteúdo e a sequência das partes do culto cristão, caracterizado por diferentes graus da formalidade.

Por que os cristãos antigos elaboraram liturgias padronizadas para o culto? Em primeiro lugar, pela grande reverência que tinham por essa atividade tão sublime e elevada da igreja. O culto a Deus tinha de ser harmonioso e ordeiro, e a liturgia servia a esses dois propósitos. Não se podia permitir que o culto a Deus fosse improvisado ao bel-prazer dos dirigentes. Outro motivo foi a preocupação com a unidade da igreja. De que maneira a igreja poderia ter um senso de coesão se cada comunidade cristã cultuasse a Deus de um modo diferente? O fato de que todas as igrejas locais seguiam essencialmente os mesmos padrões de culto contribuía para esse valioso senso de comunhão e fraternidade.

Hoje, muitos evangélicos abandonaram por completo formas litúrgicas de culto. Talvez isso fosse inevitável, por causa das transformações do protestantismo e da sociedade. Todavia, chegou-se a uma situação em que, em nome da liberdade e da espontaneidade, o culto se desvirtuou em muitas igrejas, sendo marcado pela irreverência, superficialidade e preocupação prioritária com as necessidades humanas, e não com a glória de Deus. Com isso, muitos crentes estão buscando igrejas que valorizam os padrões bíblicos do culto e seguem a recomendação paulina à igreja de Corinto: “Tudo, porém, seja feito com decência e ordem” (1Co 14.40).

Conclusão
A título de conclusão, vale lembrar os princípios propostos pelos reformadores suíços no que diz respeito ao culto:

a) precedente bíblico: sendo o culto uma atividade tão importante, Deus não deixaria de dar instruções precisas sobre ele em sua Palavra; nada deve ser feito no serviço divino que não tenha fundamento explícito nas Escrituras;

b) simplicidade: quanto mais complicado e espetaculoso for o culto, mais facilmente a atenção das pessoas será desviada de Deus para outros interesses;

c) reverência: é preciso cultivar atitudes de respeito, atenção e meditação diante de Deus;

d) teocentricidade: os objetivos principais do culto são a glória de Deus e a edificação dos fiéis, nessa ordem. Que Deus nos conceda sabedoria e discernimento a fim de ordenarmos o culto a ele atentando para as Escrituras e para os bons exemplos da história cristã.


• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”.
asdm@mackenzie.com.br.

Fonte: Revista Ultimato

Um comentário:

Unknown disse...

Texto muito rico em informações pertinentes não apenas aos estudos, mas para uma pratica liturgica coerente com principios biblicos em nossas igrejas.

Emanuel Rodrigues - Aluno do SPN - TN2