Herman Bavinck[1]
Mas
os jesuítas, entrando na discussão [sobre o pré-conhecimento de Deus], fizeram mudança.
Com o intuito de articular a onisciência de Deus com a liberdade humana,
seguindo a linha semi-pelagiana, eles introduziram o chamado conhecimento
médio(media scientia) entre o
conhecimento “necessário” e o conhecimento “livre” de Deus. Com esse
conhecimento médio eles se referem a um conhecimento divino de eventos
contingentes que é logicamente antecedente aos seus decretos. O objeto desse conhecimento
ao é o meramente possível que nunca será realizado, nem aquilo que, em virtude
de um decreto divino, é certo de acontecer, mas as possibilidades de que
dependam, para sua realização, de uma ou outra condição. Ao governar o mundo,
Deus faz que muitos resultados possíveis dependam de condições e sabe, com antecedência,
o que fará, caso essas condições sejam ou não cumpridas pelos seres humanos. Em
todos os casos, portanto, Deus está pronto. Ele antevê e conhece todas as
possibilidades e toma suas decisões e providências levando em conta todas essas
possibilidades. Ele soube, com antecedência, o que faria se Adão caísse e também
se ele não caísse; se Davi fosse ou não até Queila; se Tiro e Sidom se
arrependessem ou não. Portanto, o conhecimento que Deus tem de eventos
contingentes precede seu decreto a respeito de eventos futuros “absolutos”. Embora
os seres humanos, a cada momento, tomem suas decisões livres e independentes,
nunca poderão surpreender Deus com as decisões que tomam ou desfazer seus
planos, pois, em seu pré-conhecimento, Deus levou em conta todas as
possibilidades. Essa teoria do conhecimento mediado foi apoiada por numerosos
textos da Escritura que atribuem a Deus conhecimento daquilo que aconteceria em
um dado caso se alguma condição fosse ou não fosse cumprida(e.g., Gn 11.6; Êx. 3.19; 34.16; Dt. 7.3, 4; 1Sm
23.10 – 13; 25.29ss; 2Sm 12.8; 1Rs 11.2; 2Rs 2.10; 13.19; Sl 81.14 – 16; Jr.
26.2, 3; 38.17 – 20; Ez 2.5 – 7; 3.4 – 6; Mt. 11.21, 23; 24.22; 26.53; Lc.
22.66 – 68; Jo. 4.10; 6.15; At. 22.18; Rm. 9.29; 1Co 2.8).
Embora,
de fato, tenha recebido oposição dos tomistas e agostinianos (e.g., Bannez, os salmanticenses
[carmelitas de Salamanca, Espanha] e Billuart), essa teoria do conhecimento
médio também foi fervorosamente defendida pelos molinistas e congruístas
(Suárez, Belarmino, Lessius, etc). O temor do Calvinismo e do jansenismo
favoreceu essa teoria na Igreja Católica e, de maniera mais ou menos
pronunciada, ganhou aceitação expressa por parte de quase todos os teólogos católicos.
Desse modo, a linha de pensamento expressa por Agostinho foi abandonada e a de Orígenes
foi recuperada. Ainda que a teologia grega tenha tomado essa posição desde o
princípio, a teologia católica romana agora a seguiu. Os luteranos e os
remonstrantes também não se mostraram indispostos com essa teoria. Em tempos
modernos, muitos teólogos afirmaram, aproximadamente da mesma forma, que, para
Deus, também, o mundo é um conhecimento médio. Ele, de fato, pré-conhece os
eventos contingentes futuros como possíveis, mas descobre, com o mundo, se eles
serão realizados ou não. Para todos os casos, porém, ele conhece “uma ação que
se encaixará precisamente na ação da criatura, seja o que for que possa
acontecer”. Ele estabeleceu o esboço do plano do mundo, mas deixa o enchimento
desse esboço por conta das criaturas”. Em contraste com essa linha de
pensamento, seguindo o exemplo de Agostinho, os reformados rejeitaram a teoria
de um “pré-conhecimento nu”(nuda
praescientia) e o “conhecimento médio”(media
scientia).
Ora,
com respeito a esse conhecimento médio, a pergunta não é se as coisas [ou
eventos] não estão frequentemente relacionadas umas às outras por um tipo de conexão
condicional, que é conhecida e desejada pelo próprio Deus. se isso fosso tudo o
que ele quer dizer, ele seria aceito sem qualquer dificuldade, assim como
Gomarus e Walaeus o entenderam e reconheceram nesse sentido. Entretanto, a
teoria do conhecimento tem um objetivo diferente: se propósito é harmonizar a noção
pelagiana da liberdade da vontade com a onisciência de Deus. Nessa interpretação,
a vontade humana é, por sua natureza, indiferente. Ela tanto pode fazer uma
coisa quanto outra. ela não é determinada nem por sua própria natureza nem
pelas várias circunstâncias nas quais é colocada. Embora as circunstâncias possam influenciar a vontade, no fim das
contas ela permanece livre e escolhe conforme desejar. É claro que a liberdade
da vontade assim concebida não pode se harmonizar com um decreto de Deus,
aliás, ela consiste essencialmente em independência do decreto de Deus. Em vez
de determinar essa vontade, Deus a deixou livre. Ele não podia determinar a
vontade sem destruí-la. Com relação a essa vontade de suas criaturas racionais,
deus tem de adotar uma postura de espera vigilante. Ele observa para ver o que
elas farão. Ele, porém, é onisciente. Por isso ele conhece todas as possibilidades,
todas as contingências e também pré-conhece todos os eventos futuros reais. Nesse
contexto e conservando-o, Deus tomou todas as suas decisões e criou seus
decretos. Se uma pessoa, em certas circunstâncias, aceitará a graça de Deus,
ele escolheu essa pessoa para a vida eterna; se essa pessoa não crer, ela foi
rejeitada.
Ora,
é claro que essa teoria diverge, em princípio, do ensino de Agostinho e de
Tomás de Aquino. Certamente, em sua mente, o pré-conhecimento de Deus precede os
eventos e nada pode acontecer se não for pela vontade de Deus. “Nada, portanto,
acontece, a não ser pela vontade do Onipotente”. Não o mundo, mas os decretos são
o meio pelo qual Deus conhece todas as coisas. Portanto, os eventos
contingentes e as ações livres podem ser conhecidos infalivelmente em seu
contexto e ordem. O escolasticismo, reconhecidamente, às vezes já expressava,
nesse ponto, de um modo que diferia de Agostinho. Anselmo, por exemplo, afirmou
que o pré-conhecimento não implicava uma “necessidade interna e antecedente”,
mas apenas uma “necessidade externa e consequente”. E Tomás de Aquino, de fato,
acreditava que Deus eterna e certamente conhece os eventos futuros contingentes
de acordo com o estado no qual eles realmente estão, isto é, de acordo com sua própria
imediação, mas que, em suas “causas
imediatas”, eles são contingentes e indeterminados. Isso, porém, não altera
o fato de que, com relação à sua “causa primária”, esses eventos futuros
contingentes são absolutamente certos e, portanto, não podem ser chamados de
contingentes. E, em outro ponto, ele novamente afirma que “tudo que existe foi
destinado a existir antes que viesse à existência, porque existia por sua própria
causa para que pudesse vir à existência”.
A doutrina
do conhecimento médio, porém, representa os eventos futuros contingentes como
contingentes e livres também em relação a Deus. Isso é feito não somente com relação
à predestinação de Deus, mas também com relação ao seu pré-conhecimento, como
em Orígenes, em que as coisas não acontecem porque Deus as conhece, mas Deus as
conhece porque elas acontecerão. Portanto, a sequência não é conhecimento necessário,
conhecimento de visão, o decreto de criar (etc),
mas, em vez disso, é conhecimento necessário, conhecimento médio, decreto de
criar (etc), e o conhecimento de visão
deus não deriva seu conhecimento dos livres atos dos seres humanos de seu próprio
ser, de seus decretos, mas da vontade das criaturas.
Deus,
portanto, torna-se dependente do mundo, extrai do mundo conhecimento que ele não
tinha e não pode obter por si mesmo e, portanto, em seu conhecimento, deixa de
ser um, simples, independente – isto é, deixa de ser Deus. Inversamente, a
criatura, em grande parte, torna-se independente diante de Deus. Ela, de fato,
em um momento, recebe o “ser”(esse) e
o “ser capaz”(posse) de Deus, mas,
agora, tem a “volição”(velle)
completamente em suas próprias mãos. Ela soberanamente toma suas próprias decisões,
realiza ou não realiza alguma coisa de forma totalmente independente de um
decreto divino anterior. Uma coisa pode, portanto, vir à existência totalmente
à parte da vontade de Deus. A criatura é, agora, criadora, autônoma, soberana:
toda a história do mundo é tirada das mãos de Deus e colocada em suas mãos. Primeiro
os seres humanos decidem, depois Deus responde com um plano que corresponde a
essa decisão. Ora, se essa decisão ocorreu – como no caso de Adão – somos capazes
de concebê-la. Mas decisões de maior ou menor importância ocorrem milhares de
vezes em toda vida humana. O que podemos pensar, então de um Deus que sempre
espera todas essas decisões e mantém à mão um estoque de todos os planos possíveis
para todas as possibilidades? O que, então, resta até mesmo de um esboço de um
plano mundial quando sua execução é deixada nas mãos dos seres humanos? E de
que vale um governo cujo executivo é o escravo de seus próprios subordinados?
Na
teoria do conhecimento médio, é exatamente isso o que acontece com Deus. Deus é
um mero espectador, enquanto os seres humanos decidem. Não é Deus que faz distinção
entre as pessoas, mas as pessoas é que se distinguem. A graça é concedida de
acordo com o mérito e a predestinação depende das boas obras. As ideias às
quais a Escritura, em toda parte, opõe-se e que Agostinho rejeitou em sua polêmica
contra Pelágio são transformadas na doutrina católica romana padrão pelo ensino
dos jesuítas. Os proponentes do conhecimento médio, de fato, recorrem a muitos
textos da Escritura, mas totalmente sem fundamento. Não há dúvida de que a
Escritura reconhece o fato de que Deus inseriu as coisas (eventos, etc) em uma rede variada de conexões umas
com as outras, e que essas conexões são, frequentemente, de natureza
condicional, de modo que uma coisa não pode acontecer se outra coisa não acontecer
primeiro. [Por exemplo], sem a fé não há salvação, sem o trabalho não há
sustento, etc.
No
entanto, os textos citados pelos jesuítas para fundamentar a teoria do
conhecimento médio não provam o que precisa ser provado. Reconhecidamente, eles
falam sobre condição e cumprimento, obediência e promessa, aceitação e consequência
daquilo que acontecerá se um ou outro caminho for escolhido. No entanto, nenhum
desses textos nega que, em todos os casos, Deus – embora fale aos seres humanos
e lide com eles em termos humanos – conhecia e determinou aquilo que será
realizado – presente em Deus somente como uma ideia – e aquilo que é certo e
foi decretado por Deus não há uma área que possa ser controlada pela vontade
dos seres humanos. Uma coisa sempre pertence a uma área ou a outra. se ela é
somente uma possibilidade e nunca será realizada, ela é objeto do conhecimento “necessário”
de Deus e se, um dia, ela realmente será realizada, ela é conteúdo de seu
conhecimento “livre”. Não há um terreno médio entre os dois, não há conhecimento
“médio”.
As teorias do conhecimento médio, além disso, não
alcançam seu objetivo. Elas têm o objetivo de colocar a liberdade da vontade
humana – no sentido de indiferença – em harmonia com o pré-conhecimento divino.
Ora, elas alegam que esse pré-conhecimento concebido como conhecimento médio
deixa a conduta humana totalmente livre, não-necessária. De fato, isso está
correto, a não ser que, nesse caso, ele deixe de ser pré-conhecimento. Se Deus
conhece infalivelmente com antecedência o que uma pessoa fará em determinado
caso, ele só pode pré-conhecer isso se os motivos da pessoa determinarem sua
vontade em uma direção específica, e isso, portanto, não consistiria indiferença.
Inversamente, se essa vontade fosse indiferente, o pré-conhecimento seria impossível,
e só existiria um conhecimento post-factum.
O pré-conhecimento de Deus a vontade concebida como arbitrariedade são mutuamente
excludentes. Pois, como Cícero já dizia, “se ele conhece, isso certamente
acontecerá, mas, se isso obrigatoriamente deve acontecer, não existe algo como
o acaso”. Portanto, juntamente com Agostinho, devemos procurar a solução do
problema em outra direção. A liberdade da vontade não consiste, como
descobriremos adiante, em indiferença, arbitrariedade ou acaso, mas em “prazer
racional”. Esse prazer racional, em vez de estar em conflito com o
pré-conhecimento de Deusa, é implicado e sustentado por ele. A vontade humana –
juntamente com sua natureza, antecedentes e motivos, suas decisões e consequências
– está integrada à “ordem de causas que é certa para Deus e abrangida por seu
pré-conhecimento”. No conhecimento de Deus, as coisas estão relacionadas na
mesma rede de conexões nas quais ocorrem na realidade. Não é pré-conhecimento
nem predestinação aquilo que intervém, vindo de cima, com força de imposição. Toda
decisão humana, todo ato humano é motivado, em vez disso, por aquilo que o
precede, e, nessa rede de conexões, está incluído no conhecimento de Deus.
conservando sua própria natureza conhecida e ordenada por Deus, os eventos
contingentes e as ações livres estão ligados na ordem de causas que, pouco a
pouco, nos é revelada na história do mundo.
[1]
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2012,
p. 204 - 209
Sobre Herman Bavinck
Herman Bavinck (1854-1921) tornou-se sucessor de Abraham Kuyper na cadeira de Teologia Sistemática da Universidade Livre da Holanda, em 1902.
Sobre Herman Bavinck
Um comentário:
Olá reverendo, parabéns pelo o blog e por seus artigos e compartilhar materiais de ótima qualidade. Materiais que defendem a fé reformada.
Quero parabeniza-lo por ter digitado este texto, o qual já estava em mente publica-lo.
Amanhã (24/8/2013) vai ao ar no Blog Bereianos um artigo do Paul Helm refutando o molinismo, e também, quero lhe mostrar esses artigos em meu blog sobre o mesmo tema: http://superandoasheresias.blogspot.com.br/search/label/Conhecimento%20M%C3%A9dio
http://superandoasheresias.blogspot.com.br/2013/07/luis-molina-cria-na-eleicao-e.html
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