terça-feira, 12 de junho de 2012

Novamente o Argumento Ontológico - John Frame


Argumento Ontológico[1]
Por John M. Frame
 [Argumento Ontológico – para Intervasity Press Dictionary of Apologetics]

A mais influente formulação deste argumento (embora ele não use o termo ontológico) encontra-se nos primeiros três capítulos do Proslogium(Proslógio) de Anselmo da Cantuária (1033 – 1109). Ele havia já escrito um Monologium(Monológio), no qual ele considerou muitos argumentos para existência de Deus. Mas, então, diz ele, “comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente...; e sobre aquilo que cremos acerca da substância divina”[2](Prefácio, p. 97). Ele diz que fez uma busca extensiva para tal argumento e, quando ele estava prestes a desistir de sua busca, este argumento “voltava a mim com insistência crescente”(idem).

O Proslogium, diferente do Monologium, é uma oração. No primeiro capítulo, Anselmo invoca a presença de Deus, confessando a incompreensibilidade de Deus e [confessando] seu próprio pecado. Ele conclui com estas famosas palavras: “Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender[credo ut intelligam] . Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender”(p. 101)

O segundo capítulo começa o argumento que pressionou Anselmo. De acordo com a determinação de sua oração, que ele buscava crer a fim de entender, ele começa com uma crença Cristã: “Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior”(p. 102)

Agora, Anselmo reconhece que algumas pessoas não creem em um Deus assim, como o tolo no Salmo 14.1 que “diz em seu coração: não há Deus”. No entanto, este tolo, ao menos, entende as palavras “um ser do qual não é possível pensar nada maior”, então podemos dizer que, em certo sentido, este ser “existe no entendimento [do tolo]”(p. 102). Mas, se tal ser existe no entendimento do tolo apenas, e não na realidade, então podemos imaginar um ser maior ainda, a saber, que um que existe, não apenas no entendimento, mas na realidade. Sendo assim, o ser no entendimento do tolo não é realmente um ser do qual nenhum maior possa ser concebido. Então, um ser que realmente satisfaça a definição de Anselmo sobre Deus, um ser do qual nada maior pode ser pensado, deve existir não apenas no entendimento, mas também na realidade. Portanto, Deus deve existir, em virtude de sua própria definição.

No capítulo três, Anselmo formula a implicação de esse Deus não ser “possível sequer pensar que Deus não existe”(p. 102). Isto é, se Deus pode ser pensado que não existe, seria possível para nós pensar um Deus ainda maior, um que não pudesse ser pensado em não existir. Então, Deus não existe necessariamente, como os filósofos e teólogos recentes defenderiam. Ele não simplesmente existiria. Ele deve existir. Uma vez que conhecemos o significado de Deus, como Anselmo o definiu, nós não podemos pensar dele não existindo. Pois, para ser maior, melhor para ele existir do que não existir, e existir necessariamente, não contingentemente.

Pelo restante do livro, Anselmo procurar provar os atributos tradicionais de Deus usando o mesmo método: Deus é “justo, verdadeiro, feliz e tudo aquilo que é melhor que exista do que não exista”(p. 104)

Podemos simplificar o Argumento de Anselmo, para facilitar a referência: (1) Deus tem todas as perfeições; (2) Existência é uma perfeição; (3) Então, Deus existe.

À primeira vista, muitos imediatamente suspeitarão de falácia. Lembro-me de um jogo de festa em que um amigo produziu uma prova de que 1=2 e desafiou-nos a todos a descobrir o que estava errado com ele( existia uma divisão por um zero oculto).[3] De modo semelhante, alguém suspeita de truque conceitual na argumentação de Anselmo. Pode-se, realmente, ser tão fácil provar a existência de Deus? mas, não tem sido fácil para os filósofos e teólogos mostrar onde a falácia está localizada, se de fato houver uma. Desde Gaunilo, contemporâneo de Anselmo, Tomás de Aquino, David Hume, Immanuel Kant, J.L. Mackie e outros tem rejeitado o argumento, mas muitos filósofos até o presente têm aceito versões do Argumento Ontológico: Descartes, Spinoza, Leibniz, Hegel e seus seguidores, e, no século vinte, pensadores como Charles Harstshorne, Norman Malcon e Alvin Plantinga.

O Proslogium inclui um Apêndice “Em favor do Insipiente” pelo monge Gaunilo, com uma resposta de Anselmo. Gaunilo ressalta que é duvidoso que possamos sequer pensar Deus em nossas mentes de acordo com a definição de Anselmo: pois, quem pode pensar de um ser do qual nenhum maior possa existir? E, se podemos raciocinar a partir do conceito da realidade como Anselmo propõe, poderíamos facilmente provar a existência de uma ilha perfeita: “se não existisse, qualquer outra terra existente na realidade seria melhor do que ela...”(p. 128)

Anselmo responde a Gaunilo em uma extensão considerável. Embora Gaunilo fale “Em Favor do Insipiente”, Anselmo responde que ele, Gaunilo, “não é um insipiente, mas um católico”. Então, diz ele, “será bastante para mim responder ao católico”(p. 129). Em resposta ao primeiro ponto de Gaunilo, Anselmo contesta que Guanilo, sendo católico, não pode negar que Deus é concebível, pois ele mesmo concebe Deus. Anselmo, particularmente, remove a prova analógica de Guanilo da Ilha Perfeita, mas sua resposta básica é que tal ilha não poderia ser adequada para sua definição de Deus, do qual nada maior pode ser pensado. Apenas um ser cumpre os termos daquela definição, ou seja, o Deus do Cristianismo. No restante da resposta, Anselmo discute vários sentidos de “conceber”, “compreender”, “existência” e as relações entre esses conceitos.

Immanuel Kant pensou que Anselmo equivocou-se quanto à natureza da existência, tratando-a como uma perfeição de Deus. Na visão de Kant, existência não é perfeição, e nem mesmo uma propriedade. Ela não é, de fato, um predicado “real”, embora possa ocupar a posição de predição em uma frase como “Deus existe”. Para existência, disse Kant, não se acrescenta nada a nosso conceito de algo. Se você conceber um carro indefinido e acrescentar a cor azul, seu conceito de carro mudou. Mas se você conceber um carro e então conceber o mesmo carro com existindo, nada muda, argumenta Kant, pois, no final, ele é o mesmo carro. Como Kant propõe: “Cem táleres[4] reais não contêm mais do que cem táleres possíveis”.[5] Assim, Kant pensou que Anselmo havia errado por fazer da existência um dos atributos ou propriedades de Deus.

No entanto, Kant admite que sua posição financeira é melhor com moedas reais do que com moedas possíveis.[6] E nós sabemos que um carro real é diferente de um imaginário, e que um unicórnio real, se tal existisse, seria diferente de um imaginário. O carro real pode parecer o mesmo que em nossa cabeça, mas ele é, certamente, algo coisa diferente. Existência, então, diferente de outras propriedades e predicados em alguns aspectos, mas não no sentido de que não faça diferença para os objetos que a possuem. Assim, parece que a objeção de Kant ao Argumento Ontológico falha, embora tenha gerado e continua a gerar muita discussão.

A objeção mais comum ao argumento, divulgado por Aquino, seguido por muitos outros, é que o conceito na mente implica apenas existência mental, nunca existência na realidade. Não pode haver “salto” da mente para realidade. Este argumento invoca nossa intuição de que podemos pensar muitas coisas, como unicórnios e duendes, que não existem na realidade, e é difícil conceber algo em tais conceitos mentais que, por si só, podem provar que esses objetos existam no mundo real. Anselmo, porém, não diz que isto é isto é de validade geral para inferir realidades a partir dos conceitos. Para ele, esta inferência é válida em apenas um caso, o caso de Deus. Não é válido para nossos conceitos de unicórnio ou ilhas perfeitas, mas apenas para aquele ser do qual nenhum maior pode ser pensado.

Agora, se nunca é possível argumentar a partir do conteúdo da mente para a natureza da realidade, então, estamos no mau caminho. Em certo sentido, o conteúdo de nossa mente (incluindo a experiência de nossos sentidos, nossa reflexão racional, nossas memórias, imaginações e conceitos) é tudo que com que estamos diretamente familiarizados. Se nunca somos capazes de raciocinar a partir de qualquer um deles para a conclusão sobre o mundo real, então, não podemos conhecer o mundo real de modo algum. Estamos presos ao ceticismo. Empiristas, Racionalistas, Idealistas e outros propõem diferentes formas de descrever esta inferência. (Na medida em que Kant negou a esta possibilidade, ele implicou-se da acusação de ceticismo). Mas a inferência deve ser descrita.

A própria inferência de Anselmo pode ser devida a Platão, para quem objetos de nossa experiência são reflexos de objetos mais perfeitos, Formas ou Ideias. Temos um conceito de bondade, por exemplo, embora nada em nossa experiência é perfeitamente bom. Então, Platão acreditava, deve haver um Bem Perfeito no mundo real que serve como um modelo, critério ou padrão de bondade.  Embora possamos também rejeitar a ideia de Platão de que sabemos o bem perfeito a partir das experiências passadas da vida, ainda faz sentido afirmar que o mais alto critério de verdade, beleza e bondade deve existir na realidade, não apenas em nossas mentes. Outra coisa que conseguiríamos medir essas qualidades, exceto por um padrão subjetivo (e, portanto, arbitrário). Se bondade, verdade e beleza existem, deve haver um padrão objetivo pelo qual medi-los.

Dizer com Anselmo que Deus é aquilo do qual nada maior pode ser pensado é identificar Deus com a mais alta perfeição, o padrão e exemplo de toda grandeza e, portanto, de toda bondade, verdade e beleza e qualquer outra perfeição que possa existir. Sem tal padrão ou exemplo, não poderia haver bondade, verdade ou beleza no mundo, ou seja, o mundo seria um caos. Portanto, há um parentesco entre o Argumento Ontológico e o Argumento Transcendental (q.v).[7] ambos argumentam que, se Deus existe apenas em nossas mentes, não existem verdade ou significado, de fato, nenhum ser absolutamente. A grandeza de Deus, então, necessariamente deve existir.

O Argumento Ontológico, portanto, expressa a favor de Anselmo o coração de Cosmovisão Cristã.  Deus é a fonte de todo o valor, então sua existência é pressuposta se queremos aceitar a existência de qualquer outra coisa. Não é de estranhar, então, que este argumento surge em resposta à oração e é expresso na linguagem da oração. E não é surpresa que quando Gaunilo levanta objeções, Anselmo responde, não a um tolo, mas ao Católico. Como ele diz no seu Prefácio, ele não está tentando entender para crer, mas crer para entender. Quando ele descobre de maneira mais profunda que o Deus da Bíblia realmente é, aquele que nada maior pode ser pensado, ele vê uma importante razão por que ele deve existir.

O problema com o Argumento é que as pessoas com outras cosmovisões também tentam usá-lo. O Deus provado pela versão do Argumento de Spinoza  é bem diferente do de Anselmo. O Deus de Spinoza é idêntico com a Natureza, Dues Sive Natura. O mesmo pode ser dito do Absoluto de Hegel e o Deus do processo de Hartshorne. Em parte, as diferenças residem no fato de que cosmovisões diferentes divergem quando ao que é grande ou perfeito. Para Anselmo, é uma perfeição para Deus criar todas as coisas a partir do nada (Proslogium, cap. V, p. 104), mas não para Spinoza. Para Anselmo, é uma perfeição para Deus ser sem paixão (idem, cap. VI, p. 105), mas não para Hartshorne. O Argumento Ontológico necessariamente pressupõe um sistema de valores. Para Anselmo, este sistema vem de seu entendimento da Fé Cristã. Neste sentido, o Argumento pressupõe a revelação cristã, que, novamente, não deveria ser surpresa em vista da oração de Anselmo e o credo ut intelligam.

Como Tomás de Aquino disse, nem todo mundo reconheceria Deus como “aquele do qual nada maior pode ser pensado”, pois alguns, diz ele, tem pensado que Deus tem um corpo(Summa Theologiae, Prim. Part. P. 2, Art. 1, Obj. e Resp. 2). Nem alguém reconheceria que existência é uma perfeição, mesmo tendo em conta que é um “predicado real”. Para muitos Budistas, por exemplo, a aniquilação é preferível à existência.

Assim, a consistência do Argumento Ontológico como uma apologia para fé cristã, depende da coerência do sistema Bíblico de valores, sua noção de perfeição. O Argumento Ontológico não religiosamente neutro, mas que imediatamente assume a verdade que procurar confirmar. Apologistas Pressuposicionalistas (q.v) francamente reconhecerão e defenderão algum tipo de circularidade na apologética. Outros poderão rejeitar o Argumento Ontológico por esta razão. Mas eles devem perguntar se outros argumentos não são igualmente circulares. O Argumento Cosmológico não pressupõe uma ordem causal como encontramos nas Escrituras, mas não em David Hume? O Argumento Teleológico funciona a menos que entendamos propósitos de origem pessoal ou impessoal?


Bibliografia
Anselm of Canterbury, St. Anselm: Basic Writings, ed. by S. N. Deane (La Salle, IL: 1962).
Aquinas, Thomas, Summa Theologica in Anton C. Pegis, ed., Introduction to St. Thomas Aquinas (N. Y.: 1948).
Barth, Karl, Anselm: Fides Quaerens Intellectum (Richmond: 1960). Expounds the theological presuppositions of Anselm’s argument.
Frame, J. M., Apologetics to the Glory of God (Phillipsburg, N. J.: 1994).
Kant, Immanuel, Critique of Pure Reason, abridged, ed., tr., int.  by Norman Kemp Smith (N. Y.: 1958).
Plantinga, Alvin, God, Freedom and Evil (N. Y.: 1973). Includes a contemporary reconstruction of the argument according to modal logic and possible worlds.

Fonte: http://www.frame-poythress.org/frame_articles/2005Ontological.htm


[1] Traduzido e Adaptado por Gaspar de Souza. As Notas de Rodapé são do Tradutor.
[2] As citações diretas de Anselmo são fundamentadas em STO. ANSELMO; ABERLADO. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[3] Você pode ver o exercício desta falácia aqu: http://www.math.toronto.edu/mathnet/falseProofs/first1eq2.html
[4] Antiga moeda alemã de prata.
[5] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 7ªed. Portugal, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 504 [A599 B 627].
[6] “Mas, para o estado de minhas posses, há mais em cem táleres reais do que no seu simples conceito (isto é na sua possibilidade”(idem, p. 505) – Nota do Tradutor
[7] Veja o verbete Argumento Transcendental em “Um Glossário Vantiliano

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