Argumento Ontológico[1]
Por John M. Frame
[Argumento Ontológico – para
Intervasity Press Dictionary of Apologetics]
A mais influente formulação deste argumento (embora ele não use o termo
ontológico) encontra-se nos primeiros três capítulos do Proslogium(Proslógio)
de Anselmo da Cantuária (1033 – 1109). Ele havia já escrito um Monologium(Monológio),
no qual ele considerou muitos argumentos para existência de Deus. Mas, então,
diz ele, “comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um
único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse
demonstrar que Deus existe verdadeiramente...; e sobre aquilo que cremos acerca
da substância divina”[2](Prefácio,
p. 97). Ele diz que fez uma busca extensiva para tal argumento e, quando ele
estava prestes a desistir de sua busca, este argumento “voltava a mim com
insistência crescente”(idem).
O Proslogium, diferente do Monologium, é uma oração. No primeiro
capítulo, Anselmo invoca a presença de Deus, confessando a incompreensibilidade
de Deus e [confessando] seu próprio pecado. Ele conclui com estas famosas
palavras: “Não
tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma a minha
inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade,
que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas
creio para compreender[credo ut intelligam] . Efetivamente creio, porque, se não
cresse, não conseguiria compreender”(p. 101)
O segundo capítulo começa o argumento que pressionou Anselmo. De acordo
com a determinação de sua oração, que ele buscava crer a fim de entender, ele
começa com uma crença Cristã: “Cremos,
pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior”(p.
102)
Agora, Anselmo reconhece que algumas pessoas não creem em um Deus assim,
como o tolo no Salmo 14.1 que “diz em seu coração: não há Deus”. No entanto,
este tolo, ao menos, entende as palavras “um ser do qual não é possível pensar nada maior”, então
podemos dizer que, em certo sentido, este ser “existe no entendimento [do
tolo]”(p. 102). Mas, se tal ser existe no entendimento do tolo apenas, e não na
realidade, então podemos imaginar um ser maior ainda, a saber, que um que
existe, não apenas no entendimento, mas na realidade. Sendo assim, o ser no
entendimento do tolo não é realmente um ser do qual nenhum maior possa ser
concebido. Então, um ser que realmente satisfaça a definição de Anselmo sobre
Deus, um ser do qual nada maior pode ser pensado, deve existir não apenas no
entendimento, mas também na realidade. Portanto, Deus deve existir, em virtude
de sua própria definição.
No capítulo três, Anselmo formula a implicação de esse Deus não ser
“possível sequer pensar que Deus não existe”(p. 102). Isto é, se Deus pode ser
pensado que não existe, seria possível para nós pensar um Deus ainda maior, um
que não pudesse ser pensado em não existir. Então, Deus não existe necessariamente,
como os filósofos e teólogos recentes defenderiam. Ele não simplesmente existiria. Ele deve existir. Uma vez que conhecemos o significado de Deus, como
Anselmo o definiu, nós não podemos pensar dele não existindo. Pois, para
ser maior, melhor para ele existir do que não existir, e existir
necessariamente, não contingentemente.
Pelo restante do livro, Anselmo procurar provar os atributos
tradicionais de Deus usando o mesmo método: Deus é “justo, verdadeiro, feliz e
tudo aquilo que é melhor que exista do que não exista”(p. 104)
Podemos simplificar o Argumento de Anselmo, para facilitar a referência:
(1) Deus tem todas as perfeições; (2) Existência é uma perfeição; (3) Então, Deus
existe.
À primeira vista, muitos imediatamente suspeitarão de falácia. Lembro-me
de um jogo de festa em que um amigo produziu uma prova de que 1=2 e
desafiou-nos a todos a descobrir o que estava errado com ele( existia uma
divisão por um zero oculto).[3]
De modo semelhante, alguém suspeita de truque conceitual na argumentação de
Anselmo. Pode-se, realmente, ser tão fácil provar a existência de Deus? mas,
não tem sido fácil para os filósofos e teólogos mostrar onde a falácia está
localizada, se de fato houver uma. Desde Gaunilo, contemporâneo de Anselmo,
Tomás de Aquino, David Hume, Immanuel Kant, J.L. Mackie e outros tem rejeitado
o argumento, mas muitos filósofos até o presente têm aceito versões do
Argumento Ontológico: Descartes, Spinoza, Leibniz, Hegel e seus seguidores, e,
no século vinte, pensadores como Charles Harstshorne, Norman Malcon e Alvin
Plantinga.
O Proslogium inclui um Apêndice “Em favor do Insipiente” pelo monge
Gaunilo, com uma resposta de Anselmo. Gaunilo ressalta que é duvidoso que
possamos sequer pensar Deus em nossas mentes de acordo com a definição de
Anselmo: pois, quem pode pensar de um ser do qual nenhum maior possa existir?
E, se podemos raciocinar a partir do conceito da realidade como Anselmo propõe,
poderíamos facilmente provar a existência de uma ilha perfeita: “se não existisse, qualquer outra terra
existente na realidade seria melhor do que ela...”(p. 128)
Anselmo responde a Gaunilo em uma extensão considerável. Embora Gaunilo
fale “Em Favor do Insipiente”, Anselmo responde que ele, Gaunilo, “não é um
insipiente, mas um católico”. Então, diz ele, “será bastante para mim responder
ao católico”(p. 129). Em resposta ao primeiro ponto de Gaunilo, Anselmo
contesta que Guanilo, sendo católico, não pode negar que Deus é concebível,
pois ele mesmo concebe Deus. Anselmo, particularmente, remove a prova analógica
de Guanilo da Ilha Perfeita, mas sua resposta básica é que tal ilha não poderia
ser adequada para sua definição de Deus, do qual nada maior pode ser pensado.
Apenas um ser cumpre os termos daquela definição, ou seja, o Deus do
Cristianismo. No restante da resposta, Anselmo discute vários sentidos de
“conceber”, “compreender”, “existência” e as relações entre esses conceitos.
Immanuel Kant pensou que Anselmo equivocou-se quanto à natureza da
existência, tratando-a como uma perfeição de Deus. Na visão de Kant, existência
não é perfeição, e nem mesmo uma propriedade. Ela não é, de fato, um predicado
“real”, embora possa ocupar a posição de predição em uma frase como “Deus
existe”. Para existência, disse Kant, não se acrescenta nada a nosso conceito
de algo. Se você conceber um carro indefinido e acrescentar a cor azul, seu
conceito de carro mudou. Mas se você conceber um carro e então conceber o mesmo
carro com existindo, nada muda, argumenta Kant, pois, no final, ele é o mesmo
carro. Como Kant propõe: “Cem táleres[4]
reais não contêm mais do que cem táleres possíveis”.[5]
Assim, Kant pensou que Anselmo havia errado por fazer da existência um dos
atributos ou propriedades de Deus.
No entanto, Kant admite que sua posição financeira é melhor com moedas
reais do que com moedas possíveis.[6]
E nós sabemos que um carro real é diferente de um imaginário, e que um
unicórnio real, se tal existisse, seria diferente de um imaginário. O carro
real pode parecer o mesmo que em nossa cabeça, mas ele é, certamente, algo
coisa diferente. Existência, então, diferente de outras propriedades e
predicados em alguns aspectos, mas não no sentido de que não faça diferença para
os objetos que a possuem. Assim, parece que a objeção de Kant ao Argumento
Ontológico falha, embora tenha gerado e continua a gerar muita discussão.
A objeção mais comum ao argumento, divulgado por Aquino, seguido por
muitos outros, é que o conceito na mente implica apenas existência mental,
nunca existência na realidade. Não pode haver “salto” da mente para realidade.
Este argumento invoca nossa intuição de que podemos pensar muitas coisas, como
unicórnios e duendes, que não existem na realidade, e é difícil conceber algo
em tais conceitos mentais que, por si só, podem provar que esses objetos
existam no mundo real. Anselmo, porém, não diz que isto é isto é de validade
geral para inferir realidades a partir dos conceitos. Para ele, esta inferência
é válida em apenas um caso, o caso de Deus. Não é válido para nossos conceitos
de unicórnio ou ilhas perfeitas, mas apenas para aquele ser do qual nenhum
maior pode ser pensado.
Agora, se nunca é possível argumentar a partir do conteúdo da
mente para a natureza da realidade, então, estamos no mau caminho. Em certo
sentido, o conteúdo de nossa mente (incluindo a experiência de nossos sentidos,
nossa reflexão racional, nossas memórias, imaginações e conceitos) é tudo que
com que estamos diretamente familiarizados. Se nunca somos capazes de
raciocinar a partir de qualquer um deles para a conclusão sobre o mundo real,
então, não podemos conhecer o mundo real de modo algum. Estamos presos ao
ceticismo. Empiristas, Racionalistas, Idealistas e outros propõem diferentes
formas de descrever esta inferência. (Na medida em que Kant negou a esta
possibilidade, ele implicou-se da acusação de ceticismo). Mas a inferência deve ser descrita.
A própria inferência de Anselmo pode ser devida a Platão, para quem
objetos de nossa experiência são reflexos de objetos mais perfeitos, Formas ou
Ideias. Temos um conceito de bondade, por exemplo, embora nada em nossa
experiência é perfeitamente bom. Então, Platão acreditava, deve haver um Bem
Perfeito no mundo real que serve como um modelo, critério ou padrão de bondade. Embora possamos também rejeitar a ideia de Platão
de que sabemos o bem perfeito a partir das experiências passadas da vida, ainda
faz sentido afirmar que o mais alto critério de verdade, beleza e bondade deve
existir na realidade, não apenas em nossas mentes. Outra coisa que conseguiríamos
medir essas qualidades, exceto por um padrão subjetivo (e, portanto,
arbitrário). Se bondade, verdade e beleza existem, deve haver um padrão objetivo
pelo qual medi-los.
Dizer com Anselmo que Deus é aquilo do qual nada maior pode ser pensado
é identificar Deus com a mais alta perfeição, o padrão e exemplo de toda grandeza
e, portanto, de toda bondade, verdade e beleza e qualquer outra perfeição que
possa existir. Sem tal padrão ou exemplo, não poderia haver bondade, verdade ou
beleza no mundo, ou seja, o mundo seria um caos. Portanto, há um parentesco
entre o Argumento Ontológico e o Argumento Transcendental (q.v).[7]
ambos argumentam que, se Deus existe apenas em nossas mentes, não existem
verdade ou significado, de fato, nenhum ser absolutamente. A grandeza de Deus, então,
necessariamente deve existir.
O Argumento Ontológico, portanto, expressa a favor de Anselmo o coração
de Cosmovisão Cristã. Deus é a fonte de
todo o valor, então sua existência é pressuposta se queremos aceitar a existência
de qualquer outra coisa. Não é de estranhar, então, que este argumento surge em
resposta à oração e é expresso na linguagem da oração. E não é surpresa que quando
Gaunilo levanta objeções, Anselmo responde, não a um tolo, mas ao Católico. Como
ele diz no seu Prefácio, ele não está tentando entender para crer, mas crer
para entender. Quando ele descobre de maneira mais profunda que o Deus da
Bíblia realmente é, aquele que nada maior pode ser pensado, ele vê uma
importante razão por que ele deve existir.
O problema com o Argumento é que as pessoas com outras cosmovisões também
tentam usá-lo. O Deus provado pela versão do Argumento de Spinoza é bem diferente do de Anselmo. O Deus de
Spinoza é idêntico com a Natureza, Dues Sive Natura. O mesmo pode ser dito do
Absoluto de Hegel e o Deus do processo de Hartshorne. Em parte, as diferenças residem
no fato de que cosmovisões diferentes divergem quando ao que é grande ou
perfeito. Para Anselmo, é uma perfeição para Deus criar todas as coisas a
partir do nada (Proslogium, cap. V, p. 104), mas não para Spinoza. Para Anselmo,
é uma perfeição para Deus ser sem paixão (idem, cap. VI, p. 105), mas não para
Hartshorne. O Argumento Ontológico necessariamente pressupõe um sistema de
valores. Para Anselmo, este sistema vem de seu entendimento da Fé Cristã. Neste
sentido, o Argumento pressupõe a revelação cristã, que, novamente, não deveria
ser surpresa em vista da oração de Anselmo e o credo ut intelligam.
Como Tomás de Aquino disse, nem todo mundo reconheceria Deus como “aquele
do qual nada maior pode ser pensado”, pois alguns, diz ele, tem pensado que
Deus tem um corpo(Summa Theologiae, Prim. Part. P. 2, Art. 1, Obj. e Resp. 2). Nem
alguém reconheceria que existência é uma perfeição, mesmo tendo em conta que é
um “predicado real”. Para muitos Budistas, por exemplo, a aniquilação é
preferível à existência.
Assim, a consistência do Argumento Ontológico como uma apologia para fé
cristã, depende da coerência do sistema Bíblico de valores, sua noção de perfeição.
O Argumento Ontológico não religiosamente neutro, mas que imediatamente assume
a verdade que procurar confirmar. Apologistas Pressuposicionalistas (q.v)
francamente reconhecerão e defenderão algum tipo de circularidade na apologética.
Outros poderão rejeitar o Argumento Ontológico por esta razão. Mas eles devem
perguntar se outros argumentos não são igualmente circulares. O Argumento Cosmológico
não pressupõe uma ordem causal como encontramos nas Escrituras, mas não em
David Hume? O Argumento Teleológico funciona a menos que entendamos propósitos de
origem pessoal ou impessoal?
Bibliografia
Aquinas, Thomas, Summa
Theologica in Anton C. Pegis, ed., Introduction to St. Thomas Aquinas (N. Y.: 1948).
Barth, Karl, Anselm: Fides Quaerens Intellectum (Richmond: 1960). Expounds the theological presuppositions of Anselm’s
argument.
Frame, J. M., Apologetics to the Glory of God (Phillipsburg, N. J.: 1994).
Kant, Immanuel, Critique of
Pure Reason, abridged,
ed., tr., int. by Norman Kemp Smith (N. Y.: 1958).
Plantinga, Alvin, God, Freedom
and Evil (N. Y.: 1973). Includes a contemporary
reconstruction of the argument according to modal logic and possible worlds.
[1]
Traduzido e Adaptado por Gaspar de Souza. As Notas de Rodapé são do Tradutor.
[2] As
citações diretas de Anselmo são fundamentadas em STO. ANSELMO; ABERLADO. Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
[3]
Você pode ver o exercício desta falácia aqu: http://www.math.toronto.edu/mathnet/falseProofs/first1eq2.html
[4]
Antiga moeda alemã de prata.
[5] KANT, Immanuel.
Crítica da Razão Pura. 7ªed.
Portugal, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 504 [A599 B 627].
[6]
“Mas, para o estado de minhas posses, há mais em cem táleres reais do que no
seu simples conceito (isto é na sua possibilidade”(idem, p. 505) – Nota do
Tradutor
[7]
Veja o verbete Argumento Transcendental em “Um
Glossário Vantiliano”
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