A ciência e a filosofia são geralmente percebidas como formas independentes de saber, que recorrem a métodos distintos para produzir conhecimento. Em uma definição muito simplista, a primeira procura descrever e prever o funcionamento da natureza a partir da observação e da experimentação, enquanto a segunda recorre à reflexão e à crítica para abordar questões ligadas à existência e ao conhecimento humanos.
A distinção entre ambas se acentuou especialmente nos últimos séculos. Mas elas têm uma origem comum – tanto que antes do século 19, quando surgiu a palavra ‘cientista’, os indivíduos dedicados à investigação da natureza eram conhecidos como ‘filósofos naturais’.
Agora, uma corrente relativamente nova da filosofia volta a borrar as fronteiras que separam essas duas formas de conhecimento. Trata-se da filosofia experimental, disciplina que usa dados empíricos, obtidos frequentemente com métodos consagrados nas ciências sociais, para a investigação de questões filosóficas. Problemas ligados à consciência e à cognição estão entre os principais temas abordados por essa corrente.
Essa disciplina surgiu na primeira década do século 21. Um de seus ensaios fundadores é o artigo “O que é a filosofia experimental?”, publicado em 2004 por Joshua Knobe, professor da prestigiosa Universidade Yale (uma tradução do texto pode ser lida num blog em português dedicado ao assunto). Depois disso, a disciplina conquistou adeptos e laboratórios em várias universidades e ganhou espaço na imprensa geral e especializada.
Uma forma de apresentar essa questão pode ser a seguinte: em que medida somos plenamente responsáveis pelas nossas ações? Nossos atos e pensamentos podem de alguma forma ser determinados por fatores alheios à nossa vontade e agência? Diferentes respostas a essas questões opõem os partidários do livre arbítrio e os do determinismo.
A questão é mais complicada do que parece à primeira vista. Quando é a nossa atitude que está em jogo, somos todos adeptos do livre arbítrio. A ideia de que temos pleno controle sobre nossas decisões e ações soa-nos confortável e natural. Ninguém em sã consciência admitiria facilmente que não é responsável por seus atos.
Por outro lado, não hesitamos ao adotar o ponto de vista determinista quando o assunto não envolve decisões humanas. A ciência moderna se baseia na ideia de que tudo que acontece tem uma explicação causal e no pressuposto da regularidade da natureza, e o senso comum se alinha com esses princípios – por mais que esse ponto de vista seja contraditório com o livre arbítrio que defendemos sem hesitar quando se trata de nossa própria conduta.
Shaun Nichols descreve bem o paradoxo em seu artigo na Science:
“O determinismo é intuitivamente atraente, mas parece entrar em conflito com a ideia de que, no momento de uma decisão, é possível escolher um ou outro caminho. Parece que algo tem que ceder – seja a nossa convicção de que temos livre arbítrio, seja a nossa convicção de que cada evento é completamente causado pelos eventos anteriores.”
A percepção dessa contradição aparente por indivíduos de diferentes culturas foi o que Nichols tentou investigar a partir de vários experimentos que ele apresenta em seu artigo. Nesses estudos, pedia-se aos participantes que reagissem a afirmações alinhadas com o ponto de vista do livre arbítrio e do determinismo. Os resultados não chegam a ser surpreendentes: o senso comum é claramente indeterminista quando o assunto é a tomada de decisões por indivíduos humanos. A conclusão foi a mesma para participantes vindos de países tão diversos quanto Estados Unidos, Colômbia, China ou Índia.
Os estudos discutidos por Nichols investigaram também a percepção de um outro dilema. Suponhamos que o mundo seja determinista. Nesse caso, deveríamos ser considerados moralmente responsáveis por nossos atos? Os participantes dos estudos tendiam a concordar com esse ponto de vista, sobretudo quando ele era apresentado em situações concretas de crimes ou atos condenáveis. Quando manifesta em afirmativas mais abstratas, essa visão era mais facilmente rejeitada pelos participantes.
Nichols defende que a filosofia experimental pode ser útil para identificar a origem da nossa crença no livre arbítrio. “Se identificarmos por que os indivíduos acham que suas escolhas não são determinadas, estaremos em melhor posição para avaliar essa crença”, afirma ele na conclusão do artigo. “Saber por que as pessoas acreditam no livre arbítrio pode nos permitir avaliar se sua crença é justificada ou não.”
A questão do livre arbítrio é fascinante e tem mobilizado pesquisadores de várias outras áreas. Na neurociência, em especial, estudos surpreendentes nos últimos anos têm mudado a nossa visão dessa questão. Voltaremos ao tema em breve para discutir alguns deles.
Um comentário:
Essa conversa vai acabar em Calvino e Arminius e depois em Agostinho e Pelágio..rs.
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