sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A FÉ – Sua Natureza, Estrutura e sua Significância para Ciência


O texto que se segue, de autoria do filósofo reformado e antigo professor de filosofia da Universidade Livre de Amsterdam, D. H. Th. Vollenhoven. É um longo texto, do tipo formação de opinião. No discurso que ele apresentou na Conferência dos Estudantes - em Utrech, Holanda, em 1950. O assunto geral é sobre Fé, Ciência e o Cientista. O tema encontra-se no título desta postagem. O texto de Vollenhoven discorre sobre a base epistêmica do cientista e do fundamento pístico da ciência. Espero os comentários dos leitores, especialmente os interessados no debate fé x ciência.
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A FÉ – Sua Natureza, Estrutura e sua Significância para Ciência
Por
D.H.Th. Vollenhoven
Professor Emeritus
Universidade Livre de Amsterdam

Observações feitas na Conferência dos Estudantes – em Utrech, Holanda, 1950 – sobre Fé, Ciência e o Cientista.

Esta é uma tradução provisória de um discurso originalmente publicado em Geloof en Wetenschap: Levensbeschouwing en levenshouding van de Academicus. Utrecht – Nijmegen: N.V. Dekker & Van de Vegt[1].

Você está convidado a contribuir para este Congresso. Eu alegremente responderei a ele. Não apenas por causa das lembranças prazerosas de meus dias de estudante em Utrech em 1946, mas também, e especialmente, para reforçar nosso contato. Pois, se eu vejo corretamente, Católicos Romanos e Calvinistas na Holanda estão tornando-se estranhos uns aos outros – para detrimento de nosso país. Se esta está para mudar, é necessário, primeiro, um entendimento mútuo e claro. Poucas ocasiões são mais propícias para isto do que congressos com estes.


I. A Natureza da Fé

Tomando “fé” no sentido de fé religiosa e, primariamente, no sentido ativo de “crença” – então qual é a natureza da “fé”?

Eu descreveria fé no sentido de crença como a mais alta função na vida individual do homem. Se um homem é cristão ou – para mencionar os extremos – um pagão, é, claro, terrivelmente importante, mas incidental para nossa definição; todos possuem fé. Isto é assim porque crenças pertencem à estrutura da vida humana, na qual, a despeito de importantes diferenças na realização, é a mesma para todos.

Com esta estrutura (da vida humana), nós podemos, além disso, distinguir o “interior” e o “exterior”, ou, se você preferir, o central e o periférico, coração [2] e funções (‘functiemantel’).

Quando eu assim considero fé a mais alta função na existência humana, duas coisas são indicadas: por um lado, que a crença é apenas uma função; e, por outro lado, que a crença é mais importante na escala de funções.

Primeiro: crença é apenas funcional. Isto quer dizer: fé não é idêntica ao coração, mas é determinada pelo coração, seja para o bem ou mal, isto é, na obediência da lei do amor ou não. Em outras palavras, o homem integral é religioso, e sua vida é um caminhar ante a face de Deus em obediência ou desobediência.

Mas também: na estrutura da existência funcional a fé ocupa o lugar mais importante. Esta função é a mais alta, em que implica que todas as outras são mais baixas, e, assim, juntas formam o substrato da fé. Então, é a isto que a fé refere a todas outras funções e que estas, após outras, assinalando adiante para (antecipar) fé. Fé, então, é parte do “manto” funcional e, com isto, da estrutura do homem; e não algo que nunca foi perdido e que possa, posteriormente, retornar como donum superadditum, um dom superadicional (da graça)

Até agora, eu considerei fé na existência individual. Mas um homem nunca vive desta maneira: ele é nascido da comunidade e dentro de muitas comunidades. Existem muitas dessas relações sociais. Pense, por exemplo, da associação, empreendimento econômico, o estado e a família. Todas estas relações sociais têm em comum o fato de elas terem formações históricas em como seus fundamentos, além do que elas implicam a vida da linguagem, observação de formas sociais e sexuais, enquanto suas mais altas funções delimitam seus destinos.

A comunidade de fé também é uma estrutura social. Isto também é inerente na vida humana. Não apenas no Cristianismo, mas também entre os pagãos uma comunidade de fé é conhecida. Nos arredores cristãos, estas comunidades são chamadas de “igrejas”.

A igreja tem, portanto, assim como as relações sociais que acabamos de nos referir, um caráter funcional. Deve-se distinguir “igreja” de “corpus christianum”, o povo do Senhor, que é uma comunidade pré-funcional arraigada em Cristo. Daí os ofícios da igreja serem também funcionais e deveria ser distinguido dos ofícios pré-funcionais em que caracteriza os atos dos homens em assuntos que são feitos pela humanidade perante Deus.

Com isto, chegamos à genética. A vida humana não é algo apenas presente: ela também tem um passado. Este passado desempenha seu papel na educação que prepara um indivíduo jovem para estar na sociedade, dentro das relações sociais, quando ele tem “maioridade”. Mas o passado também é importante para a comunidade – elas também têm história. Aqui também a direção é determinada pelo coração, bem como a religião; ou seja, pela relação com Deus. É por isso que a queda de Adão foi determinativa para a história da religião. Adão não perdeu a fé – a redirecionou: ele já não acreditava mais em Deus, mas em Satã. Mas ele perdeu seu ofício pré-funcional, que posteriormente foi confiada a Cristo como o segundo Adão.

Assim, pode-se entender que a fé, embora seja sempre uma função de uma existência humana individual, é incorporada não apenas na totalidade daquela existência, mas também na vida da humanidade, seja em Cristo ou não – não importa quantas vezes a vida real mostra um esforço misto em ambas as direções de uma vez.

II. A Estrutura da Fé

Sendo funcional, a fé é sujeita à lei funcional; neste aspecto, é semelhante a todas as outras funções. Agora, lei e função nunca se aglutinam – não na fase pré-analítica. Mas no caso da função analítica (também chamada de lógica), nos depararmos com algo peculiar. Sua natureza é: analisar, distinguir. Distinguir é simplesmente observar a diversidade existente de forma independente em relação a esta atividade de distinção. Portanto, a analítica é também capaz de observar a distinção da lei e função. Não apenas em outra esfera da lei, mas também no caso da análise própria. Daí a função analítica poder distinguir a si mesmo da lei que a sustenta. Se for possível chamaremos esta lei de “norma”. Então, lei e norma não devem ser colocados em oposição um ao outro, mas devem ser distinguido entre as leis que são normas e leis que não são normas.

Em razão das relações mútuas entre as funções, não existe pós-função analítica sem auto-identificação; as leis para todas estas funções conseqüentemente são normas. É por isso que falamos de normas para a analítica, para o técnico-histórico, para a linguagem, para a vida sexual, para a economia etc.

Assim também a fé é submetida a uma lei que é uma norma. Esta norma é a palavra de Deus em seu aspecto-fé ou – no paganismo – que toma o seu lugar. Em esta norma requer reconhecimento.

Além disso, a função-fé não é apenas a norma na lei que se correlaciona com a função: sujeito a esta lei esta, também permanece na relação como todas as coisas, salvo que é sujeitada para esta lei. Parte disto é sujeito, para é objeto.

Objetos na esfera da fé são todas as coisas que não tem fé como uma função-sujeito; elas também desempenham uma parte na vida de fé; como Cristão, eu acredito que todas as criaturas, com base na revelação, são criaturas de Deus. Os sacramentos ocupam um lugar especial: eles permanecem o que são, mas ao mesmo tempo eles servem à proclamação como sinal e selo, isto é, para esclarecer e confirmar.

A Fé também está relacionada ao seu substrato (ou seja, a outras funções). A Fé não só repousa sobre ele, mas forma um todo com ele. É por isso que a fé refere-se a este substrato por meio de características que são inerentes à fé; a alegria e a tristeza da fé referem-se ao físico; seu pensamento e conhecimento ao analítico; seu sacrifício, ao econômico; sua confiança ao ético. Esta retrocipação [3] não é o elemento no sentido que se poderia dizer: a fé consiste de alegria mais sacrifício mais confiança. A Fé é algo único, sui generia; não se pode defini-la de outra maneira a não ser dizer que ela é a função mais alta. Mas estas características estão implícitas na fé sem qualificar a fé; o debate sobre se a fé é emocional, cognitiva ou volitiva é, portanto, sem sentido.

Assim, o conhecimento não é mais importante na fé do que, por exemplo, a confiança seja. Mas no que diz respeito ao nosso tema, esta característica merece um momento de nossa atenção especial. E, por isso, observamos, em primeiro lugar, que este pensar e conhecer são de caráter não-científico: ele, certamente, não poderá ser confundido com a fé, que pertence à Teologia. Entendendo escrituramente, fé é o conhecer a Deus por meio de Jesus Cristo.

III. O Significado de Fé para Ciência.

O pensamento e o conhecimento teoréticos são bastante diferentes do pensamento e conhecimento não-teoréticos. O último é sempre interessado com as coisas em sua totalidade, como por exemplo, quando eu observo as coisas em minha volta.

Mas o pensamento teorético (científico) é feito metodologicamente: cada ciência especial investiga um aspecto do todo. O método determina não apenas nosso pensamento, mas também o campo de investigação e o objeto que este lhe pertence também, e até mesmo em primeiro lugar.

O pensamento não-teórico e teórico não pode ser reduzido um ao outro. O primeiro não é menos importante que o ultimo, mas diferente. A vida prática do homem e a mulher são como tal, não inferior a do homem e da mulher na ciência: muitas vezes, sua visão é ainda mais aguda. Quem impõe o critério da ciência acima do pensamento e conhecimento não-teórico viola da vida prática; viola sua própria vida, porque também na vida do cientista, o conhecimento não-teórico mantém um importante lugar.

Mas apesar do conhecimento não-teorético e teorético não poderem ser mutuamente reduzidos, não quer dizer que eles são antagônicos. Eles são até mesmo positivamente relacionados entre si. Já que o conhecimento começa com o conhecimento não-teorético e, então, às vezes, prossegue para conhecimento diferenciado nas ciências especiais; nesta volta ele é aprofundado e enriquecido de modo que na filosofia reúne-se o conhecimento do todo.

Em tudo isso, o conhecimento não-teorético da fé ocupa um lugar especial. Pois, toda fé como função permanece função do homem; no entanto, quando alguém ouve atentamente a revelação da Palavra (a qual é confiável em si – e, assim, não precisa de testemunho para cooperá-la), ele não apenas aprende alguma coisa sobre o cosmo, mas também sobre Deus e sua relação com o cosmo. Se alguém, porém, acredita em Genesis 1.1, ele também conhecerá algo sobre Deus, ou seja, que Ele criou o mundo; e conhecerá algo sobre o cosmo, ou seja, que o mundo inteiro é criação de Deus. E este conhecimento considera os pontos principais – se você quiser: o quadro conceitual. Pois, se uma vez eu tenho este conhecimento, ele não deixa espaço para idolatrar nada criado e, positivamente, conduz-me a reconhecer a característica universal de toda criação: ela é colocada sujeita à lei de Deus e sujeita a Deus.

O mesmo vale para o conhecimento da fé concernente à história. Aqueles que confessam a Queda no pecado entendem que a queda do homem, embora não tenha sua estrutura alterada, radicalmente mudou sua direção: enquanto nenhuma nova mudança ocorra (conversão), ele não viverá corretamente guiado. O conhecimento não-teorético inclui aquilo que nós conhecemos a respeito da ira e da graça de Deus. Ambas são revelações da disposição de Deus para o pecado e para o pecador. A graça nunca, em um modo não concebível, está em oposição à natureza, mas sempre contra a ira. Quanto à relação da graça para natureza (caída), interessa-se: a melhor maneira de ser visto como chamado à vida e como cura. Pois a graça traz dons da graça, e o maior desse é a conversão do coração, a regeneração. Portanto, esta também não é uma dimensão extra recebida como um donum superadditum, mas a influência da graça por meio da qual nós começamos novamente a viver em obediência por amor, não apenas na “esfera religiosa”, mas como homens e mulheres em uma plenitude integral.

Os conceitos de conhecimento não-teorético da fé são, por conseguinte, conceitos totais. Eles não podem substituir os conceitos de investigação científica, mas enquadrá-los: o que quer que eu encontre por meio da investigação científica, cedo ou tarde, se encaixa nesse esboço.

Fé, seja cristã ou pagã, não pode ser considerada “além” da investigação. Mas o trabalho teorético é sempre uma ciência especial sobre a fé que, como campo de investigação, existe antes que a investigação possa começar e, portanto, não é construída ou fundada pela ciência.

Conclusão:

Se formos ver as relações nestes dois sentidos as coisas são assim entendidas:

Uma base teorética para fé cristã é impossível.

Mas, ao contrário, um fundamento cristão da ciência é certamente possível. É mesmo o primeiro requisito. Pois, a ciência não está fundamentada sem uma introdução de uma estrutura em que também o conhecimento cientifico deveria ser colocado.

Estas coisas são de grande importância para o investigador trabalhar. Elas incorporam seus esforços na grande luta pela verdade. Elas alimentam a responsabilidade: a ciência é parte de nossa vida – uma vida à serviço de Deus. Assim, a ciência é parte de nosso andar perante a sua face. Além disso, elas aguçam nossa visão, não apenas para aquilo que nós investigamos, mas também para o que está faltando por causa do pecado. Por exemplo, um historiador não apenas descreve o que ele encontrou em um autor pagão como Platão, mas ele verá o que Platão não conseguiu. Em outras palavras:

Ser um Cristão é infinitamente mais que ser um estudante.

Ser um Cristão é ser autorizado a estudar; assim, é mais do que não ser um estudante.

E ser um estudante Cristão é infinitamente mais do que estudar como um não-cristão. Pois o Cristão estuda toda a vida; portanto, também seu lado teorético incluindo atividades e resultados, está escondido em Deus.

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Notas:

[1] A minha tradução já foi da tradução inglesa do artigo em Holandês - NT

[2] O autor usa o termo como “centro religioso e espiritual da existência humana”(H. Dooyeweerd)

[3] Na Filosofia Reformada, o termo indica “Uma característica em certa modalidade que se refere a uma esfera anterior na escala modal, como uma espécie de reminiscência ou “lembrança”, mantendo a qualificação modal do aspecto no qual se encontra. A “extensão” de um conceito, por exemplo, é um tipo de espaço lógico: ‘lembra’ a esfera espacial, apontando para o seu núcleo de sentido, mas permanece com um sentido estritamente lógico.”(A. WOLTER in CARVALHO, Guilherme. Introdução à Filosofia Reformacional. São Paulo: AKET, s/d, p. 149)

Fonte: Reformational Publishing Project

Traduzido por Gaspar de Souza

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